segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Burguesia Paulistana.



Por Marilene Felinto



Exemplar típico da burguesia paulistana, a dona caminhava pelo parque, as artérias provavelmente entupidas da banha da carne farta que comeu a vida toda, as pelancas balançando com deselegância nas pernas envelhecidas, nos braços roliços. Era uma mulher de mais de sessenta anos, com certeza – só que tinha a arrogância de uma adolescente.

Claro que eu conhecia bem a prepotência das classes dominantes, mas essa me pegou de surpresa porque foi bem na minha cara que a mulher falou (e eu nem respondi, eu que normalmente teria passado nela um esbregue daqueles, como se diz na minha terra, eu que normalmente respondia, responderia, mandando-a engolir o que tinha dito: sua isso, sua aquilo, sua filha disso, sua filha daquilo...). Não tive ânimo. O dia estava também nublado, um sábado de manhã, a pessoa tendo que praticar a ridícula atividade de caminhar para perder peso, a tireóide endoidecida já desde os quarenta e poucos anos, desandada, sem funcionar direito, o metabolismo teimoso, a pessoa caminhando feito uma idiota, produto da civilização idiotizada também pelo sedentarismo.

A mulher das banhas e do cabelo tingido caminhava com duas outras. Estávamos em Perdizes, bairro de classe alta da zona oeste da cidade de São Paulo, num parque acanhado, cedido de favor pela companhia de águas do Estado para as pessoas caminharem, um parque sempre em obras, meio parque, meio depósito de canos, tubos e uma caixa d’água gigante.

Ia passando pelas três mulheres, peguei a conversa já começada, fundada no mais odioso preconceito de classe. A mulher das carnes moles disse, voz alta e insolente: “Só falta agora ele (presidente Lula) eleger aquela mulher (Dilma Rousseff). A gente vai sair do analfabeto ignorante para uma mulher! Eu prefiro morrer a ter que ver isso. Nosso presidente agora tem que ser o Serra, gente, pelo amor de Deus!” Então, uma das amigas dela retrucou, passando a mão no pescoço como quem mostra uma medida: “Ah, pra mim esse Serra também está engasgado até aqui!” A balofa respondeu imediatamente, com ares de dona do mundo: “Mas não tem outro, Fulana, não tem outro!”

Tratava-se do odioso preconceito de classe expresso na idéia de que a suposta “ignorância” do povo serve para justificar a necessidade de dirigi-lo do alto, ou seja, do lugar do discurso sábio e culto, que seria o das classes dominantes, como aponta Marilena Chauí: “O discurso sábio e culto, enquanto discurso do universal, pretende unificar e homogeneizar o social e o político, apagando a existência efetiva das contradições e das divisões que se exprimem como luta de classes. (...) A suposta universalidade do saber dá-lhe neutralidade e disfarça seu caráter opressor; de outro lado, a ‘ignorância’ do povo serve para justificar a necessidade de dirigi-lo do alto e, sobretudo, para identificar a possível consciência da dominação com o irracional, visto que lutar contra ela seria lutar contra a verdade (o racional) fornecida pelo conhecimento. (...) Dando ao povo o lugar da incultura, o dominante pode afirmar que a ‘plebe é temível’ porque movida por impulsos passionais (...).” (1981)

A mulher do parque de Perdizes era, além de tudo, uma sexista falocrata, uma reacionária tacanha, dessas capitalistonas bem mesquinhas. Engoli minha revolta sem responder, o olhar fixo nos olhos dela, para ver se a constrangia. É que eu, enfraquecida, fiz uma inoportuna associação de idéias naquele momento, com um fato bizarro da história da minha vida: lembrei que no ônibus em que eu vim de Recife para São Paulo como retirante, nos idos de 1969, fizemos amizade com uma mulher paulistana e seus dois filhos meninos, que voltavam de férias nas praias do Nordeste – os filhos e a mulher eram lindos, pele boa, cabelo brilhoso, roupa rica, fala toda delicada, gente que a gente só via na TV. Meus irmãos e eu, crianças mirradas, paupérrimas e matutas ficamos encantados. Alguém perguntou o nome do bairro em que eles moravam em São Paulo e a mulher respondeu: “Perdizes.” Nunca me esqueci disso. Talvez porque tenha achado o nome também lindo. Nunca tinha ouvido falar. Hoje, quarenta anos depois, moro muito perto deste bairro e minha vida não faz o menor sentido – ou talvez fizesse se a mulher do parque fosse aquela mesma do ônibus, hoje caricatural e bruxa, aquela que, na minha consciência de classe, aprendi a odiar.

Marilene Felinto é escritora.

fonte:www.carosamigos.com

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